Legal Para Quem?

As Raízes Racistas da Proibição da Cannabis Ainda Assombram o Brasil

Um ancião foi preso por se curar. Na mesma semana, a indústria da cannabis no Brasil celebrou mais de R$850 milhões em lucros. Bem-vindo à era do apartheid legal.

Por Héritier Lumumba

No mês passado, em Marília, São Paulo, um homem de 64 anos foi preso pela divisão de entorpecentes do Brasil. Seu crime? Cultivar cannabis em seu próprio quintal e extrair óleo para tratar problemas de saúde. Os agentes apreenderam cinco plantas e classificaram a situação como uma operação de “produção ilegal de drogas.”

Na mesma semana, a Kaya Mind — uma consultoria que acompanha tendências do mercado canábico — divulgou novos dados celebrando o boom de R$853 milhões (US$150 milhões) no setor de cannabis medicinal no Brasil. Impulsionado por importações corporativas, farmácias autorizadas pelo governo e uma demanda crescente, o mercado cresceu 22% em apenas um ano. Óleos de CBD, sprays tópicos, cápsulas e blends importados com THC agora estão legalmente disponíveis em farmácias, por canais regulados pela Anvisa, e até mesmo cobertos pelo sistema público de saúde de São Paulo.

Um Brasil cultiva cannabis e sofre batida policial.
O outro importa, rotula, vende — e lucra.


De Planta Sagrada a Monopólio de Estado

A proibição da cannabis no Brasil nunca foi sobre proteção à saúde. Sempre foi sobre controle de pessoas negras e indígenas.

Em 1830, o Rio de Janeiro aprovou a primeira lei anticanábica registrada nas Américas — mirando explicitamente africanos escravizados e pessoas libertas. A planta, então chamada de diamba e Pango, foi criminalizada não por causar dano, mas por sua associação com a cultura africana e práticas espirituais. Era vista como uma ameaça à ordem — ao frágil controle da supremacia branca.

Essa mesma base racista permanece. A Guerra às Drogas substituiu as leis coloniais por códigos penais, e a prisão se tornou a nova senzala. Hoje, afro-brasileiros têm muito mais chances de serem presos por posse de cannabis em pequena escala — enquanto a elite lucra com exatamente aquilo que antes nos marcava para a violência do Estado.


A Economia do CBD: Limpa, Branca e Lucrativa

A mídia agora elogia o setor de cannabis medicinal como moderno, científico e terapêutico. O CBD é vendido como algo limpo, não psicoativo e legítimo — um “primo seguro” da maconha.

Mas o que é apagado é quem construiu esse conhecimento. O uso da cannabis para tratar epilepsia, traumas e dores não surgiu em laboratório. Veio das comunidades, das tradições orais, de mães tratando convulsões nas sombras da criminalização.

Nenhum desse legado está sendo honrado.

O Brasil agora importa medicamentos à base de cannabis de mais de 400 empresas estrangeiras. As farmácias vendem produtos que chegam a custar até R$2.000 por frasco. Enquanto isso, cultivadores e associações de base — que sustentam esse trabalho há décadas — continuam sendo presos, vigiados e expulsos do mercado.

Legalização sem justiça é apenas colonialismo de jaleco.


A Liberdade Não Deve Estar à Venda

Se a cannabis é realmente um remédio, então ninguém deveria estar preso por usá-la.
Se é cultura, devemos honrar quem a preservou.
E se é uma indústria, ela deve ser construída com equidade, reparação e verdade.

Isso significa:

  • Anistia e exclusão dos registros para pessoas presas por delitos não violentos relacionados à cannabis.

  • Apoio a cultivadores comunitários e associações — não apenas a investidores estrangeiros.

  • Reconhecimento cultural e políticas reparatórias para as comunidades negras e indígenas cujas tradições e corpos pagaram o preço da proibição.

Até lá, a legalização da cannabis no Brasil não é libertação.
É segregação por lei, acesso e classe.


Não Podemos Curar Sem Enfrentar a Verdade

O ancião em Marília está numa cela. Os CEOs nas exposições de cannabis brindam à expansão. Mas as raízes dessa planta vão mais fundo que ambos.

Elas alcançam os quilombos. Os rituais de espírito. A resistência pela fumaça. O fogo da memória que não pode ser patenteado nem apagado.

Se este momento quiser significar algo, precisa ser um retorno — não apenas à planta, mas à verdade.

A pergunta não é só: “Legal para quem?”
É: “Quando a justiça vai finalmente florescer onde a dor foi plantada?”

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